Atualização da Transmissão Vertical da COVID-19
Por Augusta Maria de Assumpção Moreira
Médica do Instituto Fernandes Figueira/FIOCRUZ
O mundo passa por uma crise sanitária, desde que a China em dezembro de 2019, notificou à Organização Mundial da Saúde (OMS) a observação, na província de Wuhan, de uma doença respiratória grave, com extensos danos pulmonares, causada por um novo tipo de vírus da família coronavírus identificado como SARS-CoV-2 (abreviação do inglês Severe Acute Respiratory Syndrome – Related Coronavirus 2), doença essa, posteriormente chamada de Covid 19 (abreviação de COronaVIrus Disease-2019). Em março deste ano, a OMS declarou a doença, como uma pandemia, que tem trazido sérias consequências para todos.
Vivemos momentos de incertezas e desafios para toda a sociedade, em especial para as áreas da ciência. Um desses desafios diz respeito a saúde materno-infantil. As mudanças fisiológicas no organismo da mulher grávida e experiências passadas em outros surtos de infecções virais, colocaram o mundo em alerta para os riscos e cuidados com este binômio. Por se tratar de uma nova doença, diariamente somos surpreendidos por novos achados e mudanças de opinião e, portanto, protocolos de atendimento e diretrizes devem ser reorganizados à luz de novas evidências.
Sabemos que a forma mais frequente, de transmissão da Covid19 é de pessoa para pessoa através da dispersão de gotículas com partículas virais, que contaminam o ambiente se não houver proteção adequada. Sendo assim, a transmissão horizontal pode acontecer logo após o nascimento, inclusive induzida pelos próprios profissionais de saúde durante a assistência em um ambiente contaminado. A transmissão vertical de um vírus da mãe para o bebê, pode ocorrer durante a gravidez, no momento do parto ou pela amamentação, contudo, até o momento, não há evidências suficientes sobre essa forma de transmissão na Covid19. Um estudo retrospectivo ocorrido logo no início da pandemia, em Wuhan, com a avaliação de apenas 9 gestantes que testaram positivo para SARS-CoV-2, as amostras de líquido amniótico, sangue do cordão, leite materno e swab da orofaringe do recém nato (RN), foram testadas negativas para partícula viral.
As descrições de manifestações clínicas em neonatos na Covid19 são mais raras, porém recentemente, temos observado relatos de casos de bebês precocemente diagnosticados através do exame de RT-PCR (Transcrição Reversa seguida de Reação de Cadeia de Polimerase), considerado padrão ouro para a detecção da SARS-CoV-2, inclusive com evolução para sepse neonatal grave de início tardio.
A suspeita de infecção vertical na China, ocorreu após a identificação de altos níveis de anticorpos do tipo IgG e IgM no sangue de cordão do recém-nascido após o nascimento, contudo, sem o isolamento viral. A presença de IgM na circulação fetal não pode ser associada a uma passagem transplacentária, como ocorre com a IgG, corroborando com uma transmissão do SARS-CoV-2 ocorrida durante a gravidez semanas antes do nascimento e início da resposta imunológica do feto. No entanto, um grande problema com essa técnica é a imprecisão relativa dos testes de diagnóstico atualmente disponíveis, tanto em relação a sua sensibilidade, quanto especificidade. Ainda nessa linha de observação da presença de IgM precoce na circulação neonatal, outro estudo chinês publicada no JAMA Network, evidenciou em gestante testada para Covid19 RT-PCR SARS-Cov-2positiva, RN infectado. Tratava-se de gestação a termo, parto cesariana, realizada em uma sala operatória em isolamento e com pressão negativa, a mãe em uso de máscara N95 e o bebê não foi apresentado a mesma ao nascer, sendo automaticamente colocado em quarentena na unidade de terapia intensiva neonatal. Testagem de secreção vaginal para SARS-CoV-2 negativo, porém sem a testagem do líquido amniótico.
Em abril, foi publicada no JAMA, uma revisão sistemática usando o Medline e o EMBASE como bases de dados entre 1 de janeiro e 31 de março de 2020, com 27 artigos publicados. Desses, 9 foram considerados relevantes para esta revisão. De um total de 70 recém-nascidos de mães com infecção SARS-Cov-2 comprovada, em cinco casos (7,1% dos RNs) tiveram infecção precoce detectada em segundo dia de vida e a transmissão vertical não pôde ser excluída. A principal limitação dessa pesquisa foi a escassez de dados específicos que pudessem comprovar essa forma de transmissão e os diferentes desenhos de estudos conduzidos.
Análise de tecido placentário de 16 mulheres COVID-19 positivo, quando comparadas a grupo controle, mostram alterações intervilosas, com aumento da prevalência de arteriopatia decidual e edema. Essas mudanças podem refletir um estado inflamatório ou hipercoagulável sistêmico influenciando a sua fisiologia e associado a alterações perinatais adversas, mas sem provar uma relação direta de transmissão viral por via placentária. Vários estudos já demonstraram a relação entre a proteína enzima conversora de angiotensina 2 (ACE2) como receptor canônico para a entrada nas células, do SARS-CoV-2. A ACE2 é uma enzima ligada às membranas celulares de diversas células do organismo, especialmente nos pulmões, artérias, coração, rim e intestino, atuando como mecanismo de entrada de alguns coronavírus nessas células. Na sequência, a ativação da proteína S por células serina protease transmembranar 2 (TMPRSS2), permite a fusão do vírus com membranas celulares do hospedeiro. As células da placenta expressam, durante toda a gestação, quantidades muito pequenas dessas duas principais moléculas usadas pelo SARS-CoV-2 para infectar células humanas. Pesquisadores da Universidade Estadual Paulista (Unesp) em Botucatu identificaram dois genes altamente expressos na placenta humana que codificam proteínas que poderiam servir como uma espécie de “porta alternativa” para a entrada do novo coronavírus (SARS-CoV-2) nas células: a dipeptidil peptidase 4 (DPP4) e a catepsina L (CTSL). Na conclusão do estudo, a avaliação dos autores, sugere que essas possam ser as primeiras evidências da existência de um mecanismo alternativo de infecção das células placentárias pelo SARS-CoV-2, que precisará ser confirmado e mais bem compreendido em estudos futuros.
Não há evidências de transmissão do vírus através da amamentação. Em um estudo quantitativo com 64 amostras de leite materno coletados de 18 mulheres americanas infectadas com SARS-CoV-2, entre 27 de março e 6 de maio de 2020, foi observada que em nenhuma das amostras coletadas, detectou-se a presença de vírus com capacidade de replicação e que no leite submetido ao processo de pasteurização, nenhum vírus competente para replicação nem RNA viral foram detectados. Concluindo-se que, o próprio leite materno não deve ser uma fonte de infecção para o bebê. Portanto, mulheres infectadas, que desejam amamentar devem ser incentivadas a fazê-lo, bem como orientadas sobre a correta higienização das mãos, o uso de máscaras cirúrgicas e o uso de luvas para realização das trocas de fraldas, pelo potencial risco de eliminação de vírus pelas fezes.
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